QUEIMADAS EM QUATRO TEMPOS
( Oleone Coelho Fontes)
Nonato Marques me pede um prefácio à sua obra de historiador na maturidade, Santo Antonio das Queimadas. O convite poderia ter sido formulado a eminentes historiadores baianos. E são tantos. Preferiu a mim. A distinção me honra e me enobrece.
Queimadas está para mim, vive em mim. Sou para Queimadas. Lá passei parte da minha adolescência. Se levarmos em conta que infância e adolescência são os mais longos períodos de nossa vida, terei passado a maior parte da minha vida em Queimadas. É como se lá tivesse vivido uma dezena ou até uma vintena de anos.
QUEIMADAS MUNDANA
Inda me lembro de certa noite, finalzinho dos anos quarenta, quando cheguei a Queimadas com a família que se tornara exígua por falecimento de minha mãe. Éramos cinco irmãos. Havíamos passado temporada de ano e tanto na vizinha Santa luz. Papai coletava para o Estado, no cargo de escrivão, ao lado do velho e goguento Matos. Transferido para Queimadas, embarcou antes de nós, num fumegante trem da Leste. Eu teria sentenciado na época, se para tanto maturidade houvesse, para meu velho, quando ele partiu num comboio rápido que cruzou Santa luz ao meio-dia: " Vais encontrar um mundo novo à tua frente, meu velho. Coragem para a luta". Não disse isto porque somente muitos anos depois é que iria ler Raul Pompéia.
Chegamos por fim, a Queimadas. O papai nos esperava com o seu sorriso alvo, sua mãos de marfim, na estação. Nos desfizemos da matalotagem, fomos tratar da arrumação da morada nova: armar camas, armários, estantes ( o velho Fontinho sempre viveu de déu em déu, com toneladas de livros no rastro, arruma e desarruma , arruma e desarruma de não acabar mais), cadeiras, baús. Coincidentemente nossa casa ficava justamente defronte à de Nonato. Fecho os olhos e revejo a casa do político queimadense. Havia janelas que nunca se abriam e onde eu imaginava a existência de um número sem conta de santos ornando paredes, embiocados em nichos, com luzinhas azuis que piscavam e tremelicavam e tocos de vela que queimavam a noite inteira e entravam pelo dia. Havia também uma comprida sacada, do lado direito de quem entra, por onde as pessoas trafegavam para penetrar no casarão pelas portas do fundo e por onde os aguadeiros desfilavam carregando, recurvados, os carotes de madeiras abarrotados de água do Itapicuru. Ali na casa de Nonato vivia uma velhinha ossuda e chochinha, simpática, risonha, infatigavelmente trabalhadeira. Ela me dava a impressão de ser a rainha do mingau, do cuscuz, das pamonhas, dos bolinhos de milho, dos angus. Nunca entrei na casa de Nonato, mas morria de vontade de fazê-lo. Muitas vezes eu o assistia chegar de viagem para tornar a partir, com seu passo tardo, seu porte de homem inteligente, erudito, só conversando assuntos de alto coturno. Jamais sonharia que, muito tempo depois, iríamos ter afinidades de amigos que se admiram mutuamente. Acho que uma das suas irmãs chegou mesmo a ser minha professora primária, em grupo escolar que ficava lá para o alto, em direção à saída da cidade pela estrada de rodagem. Creio ainda que aquela professora foi a mesma que saudou Ruy Barbosa quando de sua passagem por Queimadas. Mas ainda que não tenha sido, vou continuar pensando que foi.
Queimadas promoveu um seriíssimo reboliço existencial na vida do papai. O velho Fontinho (que Deus continue a aceitá-lo no seu mirífico convívio), antes de pisar no chão mundano de Queimadas, era homem de espírito religioso, pregador protestante, leitor contumaz da Bíblia, cristão fervoroso, destes que são capazes de pegar em arma para defender o Cristo contra qualquer sanha. Queimada o modificou. E não era senão com inefável angústia que víamos o pai freqüentando os clubes carnavalescos, ingerindo bebidas alcoólicas ( isto então escandalizou nossa rígida formação presbiteriana), e namorando como um desvairado ( fazia pouco enviuvara). Era a primeira vez que eu via ( que nós, seus filhos víamos) o pai fantasiado de cores berrantes, de fitas lhe envolvendo a cabeça, pulando como estes foliões fanáticos pelas festas de momo. Doeu em todos nós, meninos.
Doeu a um tempo em que despertou em nós o desejo de conhecer além das fronteiras dos sermões dominicais das igrejas de Campo Formoso, Aracaju ( onde igualmente havíamos morado) e Santa luz. E nós, como o velho, fomos atraídos pelo que havia de mundano e gostoso nos frejes de Queimadas e caímos na farra sem levarmos em conta o que de pecaminoso e hediondo havia em tudo aquilo, segundo pregavam pastores de nossa igreja.
Em Queimadas tomei o meu primeiro gole de cerveja e vi que era ruim. Mas também vivi vida saudável, com toda a liberdade, badogue pendurado no pescoço, assaltando roças de milho e melancia, pés descalços, braços nus, correndo pelas caatingas. Tomava banhos homéricos no rio Itapicuru todas as tardes, virtualmente as tardes todas. O Juazeiro secular a que Nonato se refere, plantado à beira do rio, com suas imensas raízes ao ar livre, é meu velho conhecido. Reencontrá-lo foi reencontra-me.
Em Santo Antonio das Queimadas fiz amizades que até hoje duram. Já nem quero nesse rol incluir Nonato Marques ( o simples convite para prefaciar a obra diz bem do nosso relacionamento). Inicialmente, à nossa chegada, com a família Josias Lopes, crente como nós, proprietário da padaria Provisão (mencionada em anúncio de jornal e transcrito nesse livro ). Seus filhos são nossos amigos: Wademar, Wilson, Walter, Olga (minha professora de datilografia e graças a quem escrevo á máquina com quase todos os dedos), Odete, Débora, a maioria dos quais vivendo no Rio. Josias, o velho patriarca, casado pela terceira vez, está vivinho da silva em Coité. Gessílio, a quem encontro de quando em vez, é daquela época. Trabalhava para Reinaldo Salles que era inimigo político de meu pai (este PTB, meu velho da UDN). Brigavam como cão e gato. Em comícios, pelo auto-falante, no disse-me-disse do dia-a-dia. Águas passadas. Hoje relembro com saudades de Reinaldo Salles, desejando revê-lo. Alexandre, que tinha um irmão por nome Dabi e uma porção de irmãs, foi meu amigo de adolescência em Queimadas. O pai era antigo funcionário da Leste Brasileira. Reencontrei a família, nos anos cinqüenta. Eu morava no subúrbio de Praia Grande, eles em Escada.
Um dia apareceu em Queimadas um lutador, Renê Bastos. Homem forte, espaduado, musculoso, dominando a técnica da luta livre. Revejo-o mentalmente, à beira do Itapicuru, um domingo de manhã, ministrando aulas de sua especialidade para uma porção de homens feitos, ele destacando-se dos outros pelo porte, pela técnica e pela pele alva, tostada do sol. Anos depois, morando no Rio de Janeiro, reencontro-o, nas ruas, cumprimento-o, lembrei-lhe aquela passagem de sua vida ás margens do rio Itapicuru. O danado do lutador disse lembrar-se de si dando aulas para uns cidadãos queimadenses, enquanto os meninos faziam roda, boquiabertos. Eu estava no meio daquela meninada.
Revejo sempre constantemente Queimadas, sonhando acordado, seu serviço de alto-falantes, suas mulheres civilizadas, seus boêmios, o trem da Leste que quando parava na estação com sua maria-fumaça resfolegando, tornava a cidade numa festa.
Há no meu espírito, ao evocar Queimadas, certa música que era muito tocada no alto-falante (nem sei quem o cantor e muito menos o autor da letra) e começava assim: “ Tranquei a porta do meu coração, joguei a chave no fundo do mar”.
Evocar Queimadas quer dizer rever seus vultos, suas coisas: João Lantyer, Feira Ruim, Floriano Esteves ( o papai contava que ele espirrava e fazia acompanhar da frase: atchim, arre diabo!). a rua da Bomba, a ponte sobre o Itapicuru, os circos, os parques de diversões com suas rodas-gigantes, seus barquinhos que balançavam lá no alto, nos dando a sensação de punhalada de gelo no coração; a caça aos passarinhos em plena caatinga, o dia em que Juracy Magalhães lá esteve em campanha política, o banquete que lhe foi oferecido, discursos, gente que fervilhava, bebida e comida à vontade; a confraternização universal; as noites de Santo Antônio, São João, a festa que eram as feiras aos sábados, os meninos querendo mostrarem-se homens, fumando e carregando caixa de fósforo presa ao cinturão.
QUEIMADAS CULTURAL
Muitos anos depois que deixei Queimadas, já distanciado da infância, já na maturidade, reencontro aquela cidade, agora por outro prisma e com que surpresa o fiz! Nunca imaginei que Queimadas tivesse a mínima importância histórica, a menor individualidade cultural. Fiquei pois, mais surpreendido, entusiasmado mesmo, ao encontrar minha Queimadas nas páginas de “ Os Sertões”, do imortal Euclides da Cunha. Jamais poderia imaginar que um livro deste porte, lido, relido, discutido, criticado, traduzido, admirado, exemplificado, pudesse trazer no seu bojo aquela cidade que amparara minha romântica adolescência. A partir dão então Queimadas passou a ter, para minha maturidade, a conotação que não tivera em meus verdes anos.
É provável que tenha relido “ Os Sertões”, após o deslumbramento da primeira leitura, para ter o privilégio de rever Queimadas em letra impressa e mencionada por um homem da estatura de Euclides da Cunha. O reencontro foi inesquecível e até hoje vive em meus sentidos.
QUEIMADAS TRÁGICA
Antes de mudar-se para Queimadas eu havia conhecido um cidadão, já idoso, de corpo avantajado, estatura mediana, meio corcovado e misantropo, rosto quase quadrado e andar lento e compassado, por nome Evaristo Carlos da costa. Era amigo de meu pai. Servira, quando cabo de esquadra, com meu avô, no destacamento de Senhor do Bonfim. Evaristo tinha uma vendinha a que chamavam de Espelunca. Meu pai chamava a vendinha de Evaristo de Espelunca, e os amigos de Evaristo também haviam cognominado seu ganha-pão de Espelunca e o próprio Evaristo se referia a seu negócio pelo nome de Espelunca.
Escutei mais de uma vez meu pai mencionar, à boca pequena, que Evaristo não gostava de falar a respeito de um fato trágico ocorrido em sua vida quando militar . De fato, Evaristo morreu, em1979, sem que ninguém jamais conseguisse dele arrancar qualquer declaração com respeito àquele 22 de dezembro de 1929, quando escapou das garras aduncas de Lampião e seus facínoras. Para não dizer que ele nunca falou a ninguém a respeito do assunto, foi a mim, unicamente a mim, que ele aceitou dar meia dúzia de palavras, em rápido depoimento. Mas para isso tive de usar o meu prestígio como filho de um seu amigo e da interferência de Nilton Oliveira, negociante em Santa luz.
Graças ao depoimento de Evaristo é que complementei a reportagem que foi publicada em “ A Tarde” e ora está sendo integralmente transcrita neste trabalho de Nonato.
QUEIMADAS HISTÓRICA
Sim, mas somente agora posso dizer que conheço Queimadas nos seus meandros históricos, na sua evolução espiritual e política, na sua cultura, no seu folclore, no seu desdobramento econômico, nas suas festas, na sua gente, graças a esta obra que tive acesso através dos originais, Santo Antônio das Queimadas.
Ninguém melhor do que o próprio Nonato Marques para escrevê-lo. Filho de Queimadas, apaixonado pela terra, sertanejo competente, letrado, dotado de uma sensibilidade e de um estilo invejáveis, Nonato nos apresenta o município de Queimadas na sua totalidade. Desde que lá chegaram os primeiros desbravadores, gente forte, heróis verdadeiros e que somente agora saem do anonimato graças a sua infatigável pesquisa em códices empoeirados. Os dias de hoje, também aqui estão vistos na obra com o advento do fenômeno das comunicações, os problemas urbanos, sociais, econômicos , tecnológicos, humanos.
É preciso viver esta obra, nos seus mínimos detalhes, acompanhando o autor como se ele, numa das memoráveis noites enluaradas dos sertões, alumiado pela chama de uma candeia de azeite, escutando o chiado lá fora dos insetos nos dissesse: “ Meninos eu vi”.
Eu vi o desbravamento destas terras exsicadas; vi espiritualidade e os ritos aqui chegando com as batinas de jesuítas e capuchinhos; eu vi ser erguida , às margens do rio, a igrejinha de Santo Antônio; a elevação de Queimadas à condição de vila e esta tornada município e vi também quando o município aderiu á República e cá estava eu quando Rui por aqui esteve na sua campanha civilista; eu vi e conheço a flora e a sua fauna, eu assisti às terríveis enchentes do rio com seus flagelos; também me banhei nas águas do Itapicuru e descobri poesia nos sapos saudando a aurora. Eu vi quando aqui chegaram os guerreiros comandados pelo atrabiliário Moreira César para destruir Canudos. Lutei ao lado das tropas legai, é bem verdade, mas é que não foi esta a minha opção, pois como bom sertanejo, o meu (o nosso) lugar teria sido que ser ao lado do nosso Bom Jesus Conselheiro, que não se rendeu perante os homens e muito menos perante a história.
Mas que ótima surpresa descobrir o lado lírico de Nonato nas poesias que ele insere nesta obra, colocando tanta amenidade e delicadeza no lado porventura monótono da descrição histórica.
Setembro de 1983
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